sábado, maio 27, 2006

KERO-TE

Ele trajava um casaco azul escuro, já um bocado desbotado, mas ainda assim exuberante e uma camisa de um branco madrepérola muito bem gomada, calçava um par de sapatos ao melhor estilo inglês quase a lembrar um dançarino de outros tempos. Quem o visse aliás a passear na rua com a sua velha bengala e chapéu de coco, com aquele ar frigio e rectilíneo de quem parece andar sem tocar o firmamento, facilmente poderia imagina-lo a dançar ao lado do fred astaire, tão subtil era a sua forma de andar, de gestuar, tão delicada era a sua conduta.
- é o ultimo dos senhores! - alguém disse, O último dos poetas…
Com efeito quem atentasse ao seu rosto mesmo sem ser preciso ler as suas obras, mesmo sem ser preciso ouvi-lo, só pelo modo como os seus olhos brilhavam, só pelo modo como o seu sorriso era aberto e grande e pela forma como esse sorriso emergia do fundo da sua farta barba escura de onde a onde já ponteada pelo branco dos seus 49 anos, facilmente identificava nele um poeta, um amante do sonho mais do que da vida.
De facto ele escrevia, de facto compunha versos e versos letra a letra, de facto apregoava o amor, o canto, a mágoa, o sonho, a perda e fazia-o tão bem e de um modo tão profundo que se em qualquer recanto ele dissesse um dos seus poemas conseguia parar a cidade, comover os corações elevar a mente.
Ele sabia fazer isso, sabia o peso da palavra, a sua força, a vida tinha-lhe ensinado isso, tinha-lhe dado algo que para muitos poderia ser entendido como um dom, mas que com o passar dos anos, com o avivar e o suceder das dores já sabia ser um castigo.
Talvez por isso era agora mais contido… Não … não quero dizer menos apaixonado, quero dizer apenas mais silencioso, como se tivesse refugiado as palavras no seu peito sem faze-las vir a luz do dia.
Apesar dessa contenção fazia questão de dominar afincadamente a língua portuguesa, usava-a na sua vertente mais clássica ... tão clássica que só com o passar dos anos aceitou que farmácia se escreve agora sem “ph” e se debate ainda em acesa discussão quando alguém quer escrever por exemplo a palavra “recto” sem “C” ...
- Reto - é uma parte do rabo – diz-se recto … se eu sou recto, significa que ajo segundo os meus princípios, que sou correcto, não tem nada a ver com essa partes do corpo” – Diz ele prontamente ( e se calhar … cá para mim com alguma razão).
De resto estas novidades como o “bués”, o “curte”etc… para ele não fazem nem farão sentido algum… - “se o dicionário as integrou no vocabulário….- Mal o dele … não presta”.
Não ele não era agressivo nas discussões, e cá para nós… mesmo que fosse as pessoas já não ligavam ao que dizia… as crianças gostavam mesmo de picá-lo, habituavam-se aquele olhar paternal… gostavam de vê-lo arreliado, de ouvir as suas explicações.
Ele também gostava de se sentir picado… sempre sentia algo…sempre lhe vinham à memória as discussões na universidade nos tempos de Coimbra, sempre se lembrava da fuga à pide .
Bons tempos, os de luta… mesmo preso e torturado sentia que a liberdade era uma conquista… sabia dar valor nem que fosse ao facto de poder estar no café sentado à noite a ler o jornal do dia sabendo que as noticias não tinham sido objecto de censura.
Para ele o que fazia, os seus hábitos, as suas conquistas, o poder falar com as crianças…ser arreliado por elas, o poder ir aquele cafezinho dia após dia… era algo que fazia parte da sua deliciosa rotina diária… até porque o corpo já não se atrevia a grandes voos.
Talvez por isso o que se passou um destes dias o tenho mudado tanto… O tenha feito sentir-se novamente preechido.
Estava ele sentado no mesmo café onde ia todas as noites quando irrompe café a dentro uma jovem rapariga com os seus 19 anos, como se viesse a fugir de alguém e se senta na sua mesa como se precisasse de refugio.
Ela tinha uma aparência gótica e envergava um vestido curto preto e umas botas D. Martin. Tinha um rosto arredondado de onde sobressaia um sorriso fugidio, quase escondido pelas farripas de cabelo muito escuro e liso, mas que não conseguiam esconder a magia dos seus olhos castanhos mel, nem sequer com a ajuda do hi-line negro escuro… pelo facto de ter o contorno dos olhos algo borrado ele percebeu facilmente que ela tinha estado a chorar… sim tinha estado a chorar.
Assim ele não rejeitou a presença dela, nem mesmo quando o empregado do café lhe perguntou se ela o estava a importunar… Ele sentia que se ela estava ali era porque se sentia segura… não precisava de saber mais… ele iria protege-la… precisava de assumir isso… depois até estava a gostar de ter companhia.
Ela depois de um silencio ensurdecedor pediu-lhe desculpa por se ter sentado… disse-lhe que tinha discutido com o namorado… que ele lhe tinha tentado bater… confessou-lhe que se sentia perdida… ameaçada… - Eu amava-o mais que a mim própria.. sem ele não sou nada… mas com ele nada sou… ele consumiu-me, consome-me … mas sem ele sinto-me vazia e só. – disse-lhe ela.
Ele escutou-a sem interromper… emprestou-lhe o ombro para que ela chorasse e ela fê-lo … estiveram abraçados… Depois ele disse-lhe que só sofrendo um dia se pode alcançar o verdadeiro amor… que só quem chorou um dia pode verdadeiramente amar alguém,… que já tinha passado por essas dores e que essas dores quando saradas tinham sempre algo de luz… doravante os céus são teus... podes voar sem precisar de ninguém- ela pareceu reconfortada com as palavras dele… o seu sorriso voltou a florescer… parecia uma pessoa nova… viva…
Talvez por isso se despediu uns minutos depois, e saiu do bar.
Ele voltara a estar só… mas já não se sentia só… havia rasgos da presença dela no ar…
Uns minutos depois um barman veio entregar-lhe um pedaço de papel escrito por ele antes de partir e onde se podia ler … “hoje foste o meu anjo, obrigado por me teres acolhido nas tuas asas… agora sei que os céus são meus e também tenho o direito de voar… e porque me ensinaste que posso voar... KERO-TE”…
Ele ao ler isto ele sentiu-se tão feliz e novamente tão inteiro que nem sequer ligou ao “K” em vez do “Qu” e garanto- vos nunca nenhuma frase lhe pareceu tão bela.
Depois quem vos disse que o amor precisa de palavras...

5 comentários:

Anónimo disse...

com "K" OU "QU" o bom era todos nós sermos queridos por alguem.


beijo.

ana filipa

João Santos disse...

Muito bonito, valeu a pena ler tudo até ao fim, e concordo com a Ana Filipa...

Abraços e parabéns pelo trabalho mais uma vez [[]]

Anónimo disse...

Um sorriso, um olhar, um som deslizante que denuncia os nossos passos, uma rua apenas com uma tabuleta já quase ilegivel, uma rua onde se cruzam esses olhares, esses sorrisos, onde esses passos caminham sem sentido, sem destino, onde mesmo nesse ritmo descompassado e desconhecido tudo nasce e tudo pode ser tao preciso! Uma precisão não cobarde quando há coragem para amar mesmo depois de chorar. E uma lágrima, que nos torna sensiveis, que nos faz fortes noutra manha, em que saimos de casa até com pressa, mas é esse o dia para O encontrar! No café que marca a nossa rotina, na estação que traça o nosso partir, na praça onde lemos o livro que conta o nosso existir, ou simplesmente na varanda onde olhamos para o céu, e lá tao perto fechamos os olhos e sonhamos ... e eu nasci para amar!

E deslumbrei-me numa história que não minha, e não só, me denuncia!!


eu também KERO!


beijinhoo *

Menina do Olhar !!!!

Anónimo disse...

Olá *
Não há continuação mais bonita do que já lhe deste, nenhuma possibilidade de imaginar mais além, até que seja, lhe dará uma continuidade mais perfeita que a por que por ti já lhe foi dada! Há poucos coisas perfeitas, mas as que há nao merecem ser mudadas!!
Há coisas tal como este momento poderoso de sentir que são para sempre, e que não o fossem, seriam sempre uma passagem a recordar!
Adorei!! daí talvez o fluir da escrita em mim também!!!

Parabens!!

A tua passagem engrandece o meu espacinho, é visivel, talvez não nele, mas sim em mim os efeitos da tua passagem!! Lá terás smpre o teu lugar, espero que o desejo de lá ires nao te falhe!!!

Obrigado!

Humm para me conheceres um bocadinho melhor, ja que partihaste esse desejo comigo, e agora partilho eu ctg, vou preencher no meu espacinho o meu profile pa ti!! =) !!

Beijinhuuuuu *

Anónimo disse...

Anonymous said...
Olá o meu blog deve tar com algum problema porque ele dá erro ao gravar o meu profile. Mas como o conhecimento se trava com grandes conversas, deixei o meu mail para que possamos conversar sobre este mundo das letras e outros aspectos que a vontade e o gosto ditarem.

beijinho*

Menina do Olhar