A vida às vezes estende a dor e o vazio mais do que a garganta e o olhar conseguem suportar, às vezes damos por nós em pequenos grandes abismos e entendemos de súbito o quão frágeis são realmente os nossos sonhos, a perspectiva que temos da vida e do futuro, o quão frágeis são os laços que nos unem, o quão limitada pode ser a possibilidade de rumar contra a corrente.
Às vezes damos por nós a bater vez a pós vez contra barreiras que erguemos sem querer, não por vontade, mas por não termos consciência dos contornos da teia em que vivemos e da quão limitada é a nossa hipótese de redenção.
Porque às vezes mesmo que sem querer, ou até querendo ajudar, damos por nós a perturbar o equilíbrio das coisas e desencadeamos exactamente a resposta contrária da pretendida e acabamos por afectar negativamente aqueles que mais queremos e afastamos quem realmente queríamos ter connosco.
Porque hoje em dia a informação circula de todas as formas e se torna fácil fazer cem ou mesmo mil amigos no facebook ou no hi5, em escassos dias, mas é cada vez mais difícil encontrar alguém capaz de nos entender e de nos abraçar.
Alguém que simplesmente saiba estar lá nos bons e maus momentos, da folia da vida ao vazio da desesperança.
Alguém para quem realmente possamos estar lá sem termos medo que se vá.
Porque as vezes os rumos da vida, a mudança das estações da idade, o frenesim que acaba por nos absorver (neste febre de quem acredita que ocupar o tempo todo como se o tempo nos escapasse é estar integrado) nos impede de acompanhar os voos daqueles de quem mais gostamos e acabamos por seguir caminhos diferentes, não por o queremos, mas porque às vezes os espaços de encontro se vão tornando tão raros que as histórias de vida que nos uniam se vão desligando e desprendendo sem muitas vezes darmos conta disso.
Porque na nossa sede securizadora de coisa nenhuma nos fechamos nas nossas pequenas vidas e nos fechamos entre quatro paredes esquecendo que somos actores e responsáveis da causa comum que é o sonho de um mundo melhor.
Porque fazer pontes e suar a camisola é muito mais difícil do que ser treinador de bancada no resguardo do fim das linhas do campo ou no conforto de uma poltrona.
Porque é cada vez mais fácil mudar a nossa camisola ao mínimo desaire
Porque nos nossos dias o bota-abaixo é doutrina e os seus seguidores reis e senhores do pensamento no marasmo que passa na TV.
Porque cada vez é mais fácil cair numa espiral descendente sem que nos apercebamos que o estamos a fazer, mas também porque quando finalmente o conseguimos entender é cada vez mais difícil encontrar alguém, anónimo ou não, disposto a estar do nosso lado, para que possamos ainda que à bolina dos seus olhos, atrever-nos a rumar contra a maré.
Porque muitas vezes nos tornamos autómatos do dia-a-dia e deixamos dissolver, no caos dos problemas, a nossa humanidade e a nossa capacidade de olhar o outrem como um igual, como um de nós e nos esquecemos de ser cais contra a torrente e deixamos de fazer amarras e pontes com os outros fazendo com que deixemos de entender os sinais que nos permitem ver se o outrem que nos está próximo está mal ou bem, mesmo quando esses sinais são por demais evidentes.
Presto aqui a minha homenagem póstuma e sentida ao Senhor do Adeus, ou Senhor do Olá, como gostava de ser tratado, João Manuel Serra, falecido a 10/11/2010, aos 79 anos, pessoa bem conhecida dos portugueses e em particular dos Lisboetas que todas as noites desde há quase dez anos, acenava aos carros e às pessoas que passavam nos arredores do Saldanha ou do Restelo em Lisboa, sempre com um sorriso estampado na cara e com uma boa disposição, um cuidado no trato e uma postura que lhe conferiam um perfil quase aristocrático e que o tornaram num ente querido para muitas pessoas, quase que um ícone da pureza que ainda mora nas nossas almas apesar da urbe, como se pode comprovar pelas imensas e sentidas homenagens que lhe têm prestado.
Faço-o com toda a reverência que se pode ter por alguém que na sabedoria da sua idade descobriu que às vezes a diferença, a subtil diferença entre o vazio do abismo ou o despontar da esperança reside num pequeno gesto, num pequeno carinho.
Faço-o comovido com a forma mágica com que ele destemido brindava toda a gente fizesse chuva ou sol, com o melhor de si, sorrindo e acenando a todos, fosse quem fosse, independentemente do facto de querer também ele através desse gesto afugentar a sua própria solidão "Essa senhora malvada, que o perseguia por entre as paredes vazias da casa” e a quem procurava escapa indo para a rua acenar na sua forma tão natural como especial de “comunicar e de sentir gente”, até porque ser capaz de partilhar a sua fragilidade é uma considerável prova de coragem.
Faço-o porque o Saldanha, eu, todos nós vamos sentir falta desse acenar que saudava toda a gente…
Porque a cidade de Lisboa com a morte dele ficou mais vazia e perdeu um dos seus enigmas…
Faço-o sobretudo porque também eu acredito na importância de pequenos gestos.
Faço-o em sua memória, por todos os bons dias que em sua homenagem passaremos a dar com quem nos cruzamos.
Por toda a importância que tem romper o silêncio.