sexta-feira, setembro 25, 2009

Dentro de Nós

As vezes há dentro de nós
Um querer ir sem rumo
Um não querer ser poema
Um ficarmos sós
Um passo qualquer a cair da linha
Num poço sem fundo

As vezes somos
Bússola sem norte
Heróis despidos dos fatos
Flores de pétalas sem cor
Notas musicais saídas do tom
Braços abertos …sem ter o que abraçar

As vezes somos
Ocasos sem nexo,
nados mortos
Vagabundos da existência
Piratas da abundância
Matadores de sonhos

As vezes somos
Vazios… marasmos…
Perdidos…
sofridos…
Escolhos atirados….
Dos rios da vida

As vezes somos
Náufragos de nós
Sem escutar… o sopro da alma que é a nossa voz…
Sem vermos… o palpitar dos sonhos bem dentro do peito…
Sem lermos…. o turbilhão das letras que mora nos sonhos …
Sem ousar… ir além no mapa.. mais além que o globo
Ir além ….de nós.…

as vezes
despojamo-nos dos sentidos
e somos figurantes de peças perdidas
elos de cristal quebrado
a dar tudo por tudo com o maior afinco…
sem temer morrer no cair do pano

as vezes teimamos…
em não querer sonhar
em não querer sentir
….o aperto no peito
…qualquer coisa renasce em nós
… uma réstia de luz

E não acreditamos
Que é nosso o destino
Que há sonho em nós
Que é hora de zarpar
Que são nossos os pés que trilham os caminhos
Que há um infinito além do olhar…

Por isso hoje este desabar
Por já não querer esconder
Por não temer ver-me derribar
Por não já não querer pensar
Por saber ser acaso além das naus
Buraco sem fundo acordado

Por isso hoje este meu contar
Porque há qualquer coisa a dizer que é hora de partir
Porque é preciso zarpar para não me findar
Porque vos levo a todos nas memórias que guardo no olhar
Sonhos que idealizei e não consegui
Cometas alados a suplicar …Estrelas doces de devir

Porque sei que ainda vou sorrir
Por tudo o que ainda tiver de ser.
Vagabundo saltimbanco por sorrisos
Pirata acrobata com perna de cristal…
Actor louco em busca da ode triunfal
Um nada que se finda e recomeça
Renasce e triunfa num abraço.

Porque sei que onde for Levo comigo
Pedaços de tudo o que já fui,
Lembranças de noites sem dormir
E por maior que seja a dor da ausência
Talvez possa compreender que afinal me achei
nos momentos em que me perdi e em vão me dei

quinta-feira, setembro 03, 2009

O amor .. outra vez o amor... entre o amor e o nada

Andava eu à procura de qualquer coisa no meu blog que expressasse a dificuldade em escrever aqui alguma coisa (por força do vazio que me leva a capacidade de me expressar), quando fui visitado por Memória de Elefante, e sem que a própria pessoa que me visitou o soubesse, pude através dela descobrir mais um poeta genial brasileiro.
Refiro-me a João Cabral de Melo Neto.
Porque este espaço é também um espaço de reconhecimento e de partilha deixo o poema mais belo que encontrei desse poeta, com um agradecimento aos que me visitam por sonharem e a esperança de que gostem do que vos trouxe...
até porque o poema é fenomenal...
bem hajam
Os Três Mal-Amados
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.
O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto